'Puberdade do dente mole': como o cérebro das crianças muda aos seis anos

  • 14/07/2025
(Foto: Reprodução)
A meia infância já foi tão negligenciada pela ciência que chegou a ser apelidada de "os anos esquecidos". Mais recentemente, pesquisadores têm se dedicado a estudar essa fase da vida, que vai dos 6 aos 12 anos e é marcada por mudanças importantes. À medida que as crianças crescem, elas aprendem a expressar mais emoções, mas têm dificuldade de regular os novos sentimentos Serenity Strull/BBC Meu primeiro pequeno ato de rebeldia aconteceu quando eu tinha uns seis anos. Eu tinha acabado de ir a uma festa de aniversário com um bando de crianças que eu mal conhecia. Todas elas tinham chegado com amigos, e eu me senti com vergonha e excluído. Quando voltei para casa, estava de péssimo humor. Não lembro o que minha mãe me pediu para fazer, mas me recordo claramente da minha resposta: "Para você, tudo bem ficar de bobeira", respondi rispidamente, "enquanto eu tive que ir àquela festa!" Saí então furioso, deixando-a sem palavras. O que tinha acontecido com o garotinho alegre dela? Ela talvez tivesse ficado menos surpresa se vivêssemos em um país de língua alemã. A palavra Wackelzahnpubertät – literalmente "puberdade do dente mole" – é usada para descrever como crianças de seis anos começam a demonstrar um mau humor característico da adolescência. "Comportamento agressivo, atos de rebeldia e tristeza profunda são típicos da puberdade do dente mole", descreve a revista alemã Wunderkind. Ao contrário da puberdade de fato, a puberdade do dente mole não é causada por alterações hormonais. Ela coincide com o início da "meia infância" – um período de profundas mudanças psicológicas em que o cérebro estabelece as bases para pensamentos e sentimentos mais maduros. "É uma fase importante, na qual a criança está construindo sua identidade e tentando descobrir quem é em relação às outras pessoas", diz Evelyn Antony, doutoranda em psicologia na Universidade de Durham, no Reino Unido. "E o universo emocional deles também está se expandindo." Enquanto a infância e a adolescência são hoje bem compreendidas, a segunda infância – que abrange as idades de 6 a 12 anos – tem sido tradicionalmente negligenciada na pesquisa científica. Alguns psicólogos chegam a descrevê-la como nossos "anos esquecidos". "Muitas pesquisas se concentram nos primeiros anos, quando os bebês falam e andam, e depois na adolescência, quando você tem um pouco mais de rebeldia", diz Antony. "Mas se sabe menos sobre a segunda infância." Isso vem mudando recentemente, com novas pesquisas identificando as principais características da transformação mental das crianças nessa fase da vida. As mudanças incluem uma maior capacidade de refletir sobre seus sentimentos e modificá-los quando necessário, juntamente com uma "teoria avançada da mente" que lhes permite pensar de forma mais sofisticada sobre o comportamento dos outros e responder adequadamente. Elas também começam a dominar os fundamentos da investigação racional e da dedução lógica, para que possam assumir mais responsabilidade por suas ações – razão pela qual, na França, também é conhecida como "l'âge de raison" (a idade da razão). Como ilustra o conceito de puberdade do dente mole, o início da meia-infância pode ser acompanhado por algumas dores de crescimento, mas uma compreensão mais profunda das mudanças neurológicas e psicológicas envolvidas têm oferecido novos insights sobre as melhores maneiras de apoiar uma criança ao longo dessa jornada. Meia infância ainda é pouco estudada pela ciência Serenity Strull/BBC Puberdade do dente mole Vamos começar com a regulação emocional. No início da segunda infância, a maioria das crianças geralmente já fez grandes avanços na capacidade de controlar seus sentimentos. Quando recém-nascidos, eles são completamente dependentes dos adultos ao redor para aplacar a angústia, que geralmente é causada por estressores físicos como fome, fadiga ou cólicas. Ao longo dos dois anos seguintes, eles desenvolvem um repertório emocional maior, que inclui alegria, raiva e medo, mas não sabem como regulá-los – levando a essas birras de explodir os tímpanos. A linguagem em desenvolvimento de uma criança pode proporcionar algum alívio desses turbilhões. Isso ocorre em parte porque permite que a criança expresse suas necessidades com mais precisão, para que os outros possam responder adequadamente antes que a frustração se acumule. Não há necessidade de gritar quando se quer mais comida, já que é possível simplesmente dizer "estou com fome", e um adulto atencioso vai responder. Palavras que expressam emoção podem trazer um benefício ainda mais imediato. Nomear uma emoção parece alterar sua resposta neural, envolvendo partes do córtex pré-frontal, uma área envolvida em pensamentos mais abstratos, enquanto acalma a amígdala, a região responsável pela sensação da emoção bruta. Ao completar cinco ou seis anos, no entanto, a criança enfrenta novos desafios que colocam sua compreensão emocional à prova, afirmam Antony e outros pesquisadores. Em vez de depender dos adultos para orientar todas as suas ações, espera-se que ela tenha maior independência – criando incerteza e ambiguidade que podem gerar frustração. Elas precisam fazer amizades sozinhas, conviver com pessoas de quem não gostam e obedecer às ordens dos adultos. Ao mesmo tempo, aponta Antony, também estão desenvolvendo um senso de identidade mais forte, com a necessidade de definir quem são em relação aos outros. Essa transição pode levar a regulação emocional da criança ao limite, o que pode resultar nos estados de ânimo da puberdade do dente mole, durante os quais a criança pode ficar abatida e carente ou irromper em súbitas explosões de raiva. Felizmente, o cérebro das crianças se adapta rapidamente às novas demandas. Esse processo geralmente inclui o desenvolvimento de um vocabulário mais amplo para descrever e compreender o que estão sentindo, incluindo o conceito de emoções mistas. (Aos nove anos, a maioria das crianças consegue reconhecer que o final agridoce de A Pequena Sereia, da Disney, é ao mesmo tempo feliz e triste, por exemplo.) Elas também aprendem novas estratégias para modular seus sentimentos por conta própria, sem depender dos pais ou professores para acalmá-las. Ao longo da segunda infância, as pessoas se tornam mais hábeis em usar a "reavaliação cognitiva", por exemplo – que envolve alterar a interpretação de um evento para mudar seu impacto emocional. Se estiverem com dificuldades com uma tarefa na escola, por exemplo, a criança pode começar pensando "não consigo fazer isso" ou "sou burra" – ou pode reconhecer sua frustração como um estímulo para adotar uma nova estratégia, o que provavelmente acalmará sua raiva e aumentará sua perseverança. Grande parte do caminho para a maturidade vem da observação dos adultos ao seu redor. "As crianças aprenderão como seus pais lidam com conflitos e diferentes questões que surgem em suas vidas", diz Antony. Buscando amizades O universo social da criança também está mudando. "A meia-infância é um período em que 'amizades recíprocas' começam a se desenvolver", explica Simone Dobbelaar, pesquisadora de pós-doutorado em psicologia do desenvolvimento e da educação na Universidade de Leiden, na Holanda. Em outras palavras, elas começam a entender o dar e receber nos relacionamentos, que se tornam um foco maior em suas vidas. "As crianças começam a passar mais tempo com seus colegas dentro e fora do contexto escolar." Durante a meia-infância, as crianças desenvolvem essas habilidades sociais e percepções mentais para acompanhar os pensamentos e sentimentos de muitas pessoas. Imagine, por exemplo, a história de uma criança, Nick, que quer entrar para um time de futebol americano, mas não acredita que vá conseguir a vaga. O treinador está ciente da incerteza de Nick, mas o quer no time. Depois de fazer sua seleção, o treinador sabe que Nick ainda não está ciente de sua decisão de incluí-lo no time? (A resposta correta é sim.) Para responder a esse tipo de pergunta, a criança precisa considerar o que o treinador sabe sobre o que Nick sabe sobre a opinião do treinador. Em outras palavras, ela está considerando a teoria da mente de uma pessoa sobre a teoria da mente de outra, o que é conhecido como um processo "recursivo". Esse raciocínio é importante para rastrear quem sabe de um segredo, espalhar fofocas no parquinho e reconhecer quando alguém pode estar "blefando duas vezes" para nos enganar em um jogo – mas, até recentemente, os psicólogos não tinham clareza sobre isso quando isso aparecia pela primeira vez na infância. Para chegar à resposta, Christopher Osterhaus, da Universidade de Vechta, na Alemanha, e Susanne Koerber, da Universidade de Freiburg, recrutaram 161 crianças de cinco anos e mediram seu desempenho em diversas tarefas de teoria da mente ao longo dos cinco anos seguintes. Analisando os dados, eles constataram um "aumento acentuado" em suas habilidades entre os cinco e os sete anos, antes do desempenho começar a estagnar. Isso sugere que houve algum tipo de salto conceitual, diz Osterhaus: "Se fosse apenas [eles se tornando gradualmente melhores em lidar com] a complexidade da tarefa, seria de se esperar um aumento mais constante." Esse salto mental tem consequências imediatas e positivas para a vida social e o bem-estar das crianças, aponta a pesquisa. "Descobrimos que, quanto maior o raciocínio social, menores os sentimentos de solidão", pontua Osterhaus. "Talvez elas estejam achando mais fácil fazer amizades ou se envolver em amizades mais profundas." Nesse sentido, a pesquisa de Dobbelaar sugere que o aumento da sensibilidade está ligado a comportamentos mais pró-sociais, como agir de forma especialmente gentil com alguém que se sente excluído. Para estudar isso, ela realizou um experimento que imitava o tipo de bullying mesquinho que, infelizmente, é comum em muitos playgrounds. O experimento envolveu um videogame simples chamado Cyberball, no qual quatro jogadores passam uma bola entre si. Sem o conhecimento dos participantes, os outros três jogadores eram controlados pelo computador, dois dos quais podiam ser programados para excluir o terceiro robô, não lhe dando a chance de pegar e lançar a bola. Os participantes mais jovens pareciam ser menos sensíveis à injustiça. À medida que passavam da meia-infância para o início da adolescência, no entanto, muitos participantes começaram a compensar o comportamento cruel dos outros jogadores usando suas próprias vezes para passar a bola para o robô que estava sendo ignorado – demonstrando um pequeno sinal de solidariedade à vítima. Usando exames de ressonância magnética funcional do cérebro das crianças, Dobbelaar e seus colegas descobriram que isso estava associado a algumas mudanças características na atividade neural, o que sugeria uma redução do foco em si mesmas – e, presumivelmente, um aumento do foco nos outros. "Isso pode ser devido ao aumento da capacidade de assumir perspectivas", diz ela, já que os cérebros em desenvolvimento das crianças foram capazes de considerar os sentimentos do "robô intimidado". Adultos podem facilitar o desenvolvimento da regulação emocional por meio de conversas frequentes com as crianças Serenity Strull/BBC O começo da insegurança Apesar desses muitos benefícios, o raciocínio social sofisticado pode ter uma desvantagem: um maior julgamento sobre si mesmo e maior insegurança. Considere um estudo sobre a "lacuna de afinidade", que descreve nossa tendência a subestimar o quanto outra pessoa gosta de nós em comparação com o quanto gostamos dela. Um estudo recente de Wouter Wolf, que agora trabalha na Universidade de Utrecht, na Holanda, descobriu que a lacuna de afinidade surge pela primeira vez aos cinco anos de idade e aumenta de forma constante ao longo da segunda infância. Quanto mais sintonizados nos tornamos com a vida mental dos outros, ao que parece, mais começamos a nos preocupar que a visão que eles têm de nós não seja tão amigável e positiva quanto gostaríamos. Suspeito que isso possa explicar meu mau humor na festa; foi meu primeiro contato com a autojulgamento e a solidão – e eu ainda não tinha palavras para expressar por que me sentia triste e com raiva, ou as habilidades para superar a lacuna de afinidade e construir novas amizades com pessoas que eu não conhecia bem. O poder de uma conversa Os adultos na vida de uma criança podem facilitar o desenvolvimento dessas habilidades por meio de conversas frequentes. Antony, por exemplo, aponta pesquisas que demonstram o poder do "coaching emocional". Isso envolve ouvir a criança sem julgamentos, validar o que ela está sentindo e, em seguida, sugerir maneiras de seguir em frente de forma mais positiva. "Não se trata de o adulto tentar consertar tudo para ela, mas sim guiá-la nesse processo de gerenciamento de suas emoções", diz ela. Um adulto pode incentivar a reavaliação cognitiva, por exemplo, mostrando à criança como um evento inicialmente perturbador pode ser interpretado de diferentes maneiras. A criança pode então aplicar isso quando estiver novamente chateada, protegendo-a contra estresses futuros. Um pai ou responsável também pode conversar sobre dilemas sociais – seja na vida real ou na ficção. "Você pode perguntar a eles: por que essa pessoa reagiu daquela maneira? Por que ela disse isso?", exemplifica Osterhaus. Isso os ajuda a pensar mais cuidadosamente sobre os estados mentais de outras pessoas, diz ele, o que deve incentivar uma teoria da mente mais avançada. Às vezes, as duas abordagens convergem naturalmente. Se uma criança está abalada porque seu melhor amigo foi rude, você pode incentivá-la a questionar os possíveis motivos do comportamento desagradável. Talvez ele estivesse cansado ou tendo um dia ruim; não foi nada pessoal, e o episódio pode, portanto, ser encarado com compaixão em vez de raiva. Como qualquer habilidade que vale a pena aprender, essas precisam de prática constante. Em muitos desses momentos, no entanto, a criança estará bem equipada para entender a sua própria mente e a dos outros, guiando-a muito além da "puberdade do dente mole" para as aventuras da adolescência e além. *David Robson é um premiado escritor e autor de ciência. Seu livro mais recente, "The Laws of Connection: 13 Social Strategies That Will Transform Your Life", foi publicado pela Canongate (Reino Unido) e Pegasus Books (EUA e Canadá) em junho de 2024. Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Future. LEIA TAMBÉM: Menstruação precoce aumenta risco de doenças cardiovasculares e câncer; alimentos podem evitar 5 sofrimentos psíquicos comuns na infância- e o que fazer para ajudar Desidratação no calor: xixi é 'termômetro' para evitar quadro; crianças e idosos correm maior risco

FONTE: https://g1.globo.com/saude/noticia/2025/07/14/puberdade-do-dente-mole-como-o-cerebro-das-criancas-muda-aos-seis-anos.ghtml


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